quarta-feira, 23 de abril de 2008

um trecho do saramago



...Jesus anunciou numa voz firme,
Vou-me embora. Pastor parou, olhou-o sem mudar de
expressão, apenas disse, Boa viagem, não preciso dizer-te
que não és meu escravo nem há contrato legal entre
nós, podes partir quando entenderes, Não queres saber
por que me vou, A minha curiosidade não é tão forte
que me obrigue a perguntar-to, Parto porque não devo
viver ao lado duma pessoa que não cumpre as suas obrigações
para com o Senhor, Que obrigações, As mais elementares,
as que se exprimem pelas bênçãos e pelas graças.
Pastor ficou calado, com um meio sorriso que se
revelava mais nos olhos que na boca, depois disse, Não
sou judeu, não tenho de cumprir obrigações que não são
minhas. Jesus recuou um passo, escandalizado. Que a
terra de Israel fervilhasse de estrangeiros e seguidores de
deuses falsos, por de mais o sabia, mas nunca lhe sucedera
dormir ao lado de um deles, comer do seu pão e
beber do seu leite. Por isso, como se segurasse diante de
si uma lança e um escudo protector, exclamou, Só o Senhor
é Deus. O sorriso de Pastor apagou-se, a boca ganhou
de súbito um vinco amargo, Sim, se existe Deus terá
de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem
dois, assim haveria um deus para o lobo e um deus para
a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata,
um deus para o condenado, um deus para o carrasco,
Deus é uno, completo e indivisível, clamou Jesus, e quase
chorava de piedosa indignação, ao que o outro respondeu,
Não sei como pode Deus viver, a frase não passou
daqui porque Jesus, com a autoridade de um mestre
de sinagoga, cortou, Deus não vive, é, Nessas diferenças
não sou entendido, mas o que te posso dizer é que não
gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo
tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta
que vai ser cortada, Ofendes a Deus com esses
pensamentos ímpios, Não valho tanto, Deus não dorme,
um dia te punirá, Ainda bem que não dorme, dessa maneira
evita os pesadelos do remorso, Por que me falas tu
de pesadelos e remorso, Porque estamos a falar do teu
deus, E o teu, quem é, Não tenho deus, sou como uma
das minhas ovelhas, Ao menos dão filhos para os altares
do Senhor, E eu digo-te que como lobos uivariam essas
mães se o soubessem. Jesus ficou pálido, sem resposta.
Agora o rebanho rodeava-os, atento, num grande silêncio.
O sol já nascera e a sua luz toucava de vermelho-rubi
o velo das ovelhas e os cornos das cabras. Jesus
disse, Vou-me embora, mas não se moveu. Apoiado ao
cajado, tão calmo como se soubesse ter todo o tempo futuro
à sua disposição, Pastor esperava. Enfim, Jesus deu
alguns passos, abrindo caminho entre as ovelhas, mas
parou de repente e perguntou, Que sabes tu de remorso
e pesadelos, Que és o herdeiro de teu pai. Estas palavras
não as pôde suportar Jesus. No mesmo instante dobraram-se-lhe
os joelhos, escorregou-lhe do ombro o alforge,
donde, por obra de acaso ou de necessidade, lhe
saltaram as sandálias do pai, ao mesmo tempo que se
ouvia o ruído da tigela do fariseu ao partir-se. Jesus
começou a chorar como uma criança abandonada, porém
Pastor não se aproximou, apenas disse lá donde estava,
Lembrar-te-ás sempre de que conheço tudo a teu
respeito desde que foste concebido, e agora decide-te de
uma vez, ou partes, ou ficas, Diz-me primeiro quem és,
Ainda não é tempo de o saberes, E quando o souber, Se
ficares, arrepender-te-ás de não teres partido, se partires,
arrepender-te-ás de não ter ficado, Mas se eu me
fosse embora não viria a saber quem és, Enganas-te, a tua
hora há-de chegar e nessa altura estarei presente para to
dizer, posto isto basta já de conversa, o rebanho não
pode ficar aqui o dia todo à espera de que tu te resolvas.

Saramago, Evangelho Segundo Jésus Cristo

Nenhum comentário: