segunda-feira, 27 de abril de 2009

MITO CHAMADO "deus"


"Eu sei que sem mim, por nenhum momento, Deus pode viver. Se eu não me converto, ele terá que renunciar o espírito. Deus não é capaz, sem mim, de criar nem mesmo o mais ínfimo dos vermes. Sou como Deus, tão grande e Deus é como Eu, tão pequeno. Não pode estar sobre mim nem eu posso estar sobre ele. Deus é em mim o fogo e eu sou nele o resplendor... Não somos então, profundamente iguais?
Deus ama a mim mais do que a si mesmo. Eu o amo mais do que a mim próprio. Tem o mesmo valor aquilo que lhe dou e aquilo que ele me concede. Deus é homem para mim e eu para ele sou Deus. Satisfaço assim sua sede e ele corre em minha ajuda... Aos humanos Deus se amolda e está a nossa disposição... Pobre de nós se não fossemos aquilo que devemos ser!
Deus é o que é e eu sou o que sou! Se conheces um, estarás conhecendo os dois. Fora de Deus eu não existo, Deus não existe fora de Mim. Eu sou Luz e vida ele é minha recompensa!"
Eckhart

quarta-feira, 15 de abril de 2009

passeio no inferno


Em um instante ele não estava mais ali. Agora ele estava no inferno. E curiosamente alguma coisa era familiar. Ele sabia que estava no inferno, a última coisa que ele se lembra é de ter olhado pro relógio, mas não fazia idéia de que horas eram... e agora ele era incapaz de enxergar os ponteiros do relógio... Tarde pra quem chega e cedo pra quem vai embora, tudo uma questão de percepção... A hora certa pra alguém, e certamente os piores momentos de uma vida, da vida de outro alguém... Depende muito da fase da vida, e das coisas que passamos até chegar aqui... Enquanto envelhecemos somos capazes de sentir que o tempo passa cada vez mais rápido. Tudo uma questão de percepção. Tudo é uma questão. Ele estava no inferno, e alguma coisa era familiar. O inferno é exatamente igual a isto aqui, mas em outra vibração. Parece com algo que, tragicamente, vai acontecer, ou que deveria ter acontecido. Tudo está em seu devido lugar, mas parece devastado. Um ar quente que queima as narinas e os pulmões. Um cheiro forte incomodava-lhe quase que insuportavelmente. Um céu sem lua e sem estrelas... na verdade não é nem noite e nem dia. A única certeza é uma sensação dificil de descrever... talvez uma inevitabilidade, uma angústia sem fim... uma dor infinita, a angústia e a obcessão. Tudo está devastado a sua volta, e tudo também está devastado dentro de todos nós. E a visão disso tudo é desesperadora, e em meio ao desespero e a desesperança surge uma presença... uma presença familiar... sentido-se à vontade para perguntar, as palavras não são capazes de sair de sua boca... mas uma resposta vem de forma incompreencivelmente clara... Quem manda aqui é a senzala! Uma sensação de terror percorre seu corpo, uma sensação que ele nunca sentiu anteriormente, mas que lhe parecia estranhamente familiar... A eminente derrota do espirito...

segunda-feira, 13 de abril de 2009

barba

Eles eram considerados por todos o casal ideal. Nunca brigavam, viviam na maior harmonia, estavam sempre rindo um para o outro e trocando carícias. Mas aí tudo mudou.De repente, ele resolveu deixar crescer a barba. Por que tomou essa decisão não estava bem claro. Parece que tinha encontrado o retrato de um bisavô, muito parecido com ele, e que usava uma bela barba negra. O exemplo o encorajou, e lá pelas tantas ele estava virando barbudo também. Não se tratava de um discreto cavanhaque, ou de uma bem cultivada barba. Não, era uma barba de patriarca, de eremita, uma barba longuíssima, que lhe chegava ao peito.Muita gente estranhou. Os amigos, naturalmente, e também o diretor da loja de departamentos onde era chefe de seção: aquilo espantava os fregueses. Mas ninguém reclamou mais do que a esposa. Para começar, ela não gostava de homens barbudos; depois, queixava-se, era uma coisa desagradável, que lhe irritava a pele do rosto. Chegou a ameaçá-lo com uma greve de sexo se o marido não fosse ao barbeiro raspar a face.Escusado dizer que nem as críticas nem as ameaças o convenceram. Estava simplesmente encantado com a barba, cuidava dela, penteava-a cuidadosamente; porque, segundo dizia, agora sim, tinha descoberto a sua verdadeira personalidade. E foi então que leu no jornal sobre o Campeonato Mundial de Barbas e Bigodes, a se realizar na Alemanha. De imediato, decidiu participar. Não tinha dúvidas de que sua barba seria a vencedora e que ele traria para o Brasil um grande título. Já sabia até que tipo de penteado faria, dando aos pêlos o formato de lanças guerreiras. Coisa para entusiasmar o júri.Quando a esposa soube desse plano, ficou por conta. Já não bastava o vexame que ele dava na cidade, precisava ir para o exterior? Discutiram longamente, mas ele não quis nem saber: iria e pronto; já estava até com a passagem comprada.Vendo que não conseguiria convencê-lo, ela partiu para a ação. Na noite antes da partida colocou um comprimido para dormir na comida dele, e enquanto o marido estava ferrado no sono, cortou-lhe a barba.Mas ele foi assim mesmo. Com uma barba postiça, que era uma cópia exata de sua barba verdadeira. Não ganhou prêmio algum, mas voltou contente: pelo menos tinha reafirmado, perante o mundo e a mulher, o direito à barba.

Moacyr Scliar... adoro.... foto meramente ilustrativa, como sempre...

Não esqueça os maus



"Senhor: quando vieres na Tua glória, não te lembres apenas dos homens de boa vontade; lembra-Te também dos homens de má vontade.

"E, no dia do Julgamento, não Te lembres apenas das crueldades, servícias e violências que eles praticaram: lembra-Te também dos frutos que produzimos por causa do que eles fizeram. Lembra-Te da paciência, da coragem, da confraternização, da humildade, da grandeza de alma e da fidelidade que nossos carrascos terminaram por despertar em nossas almas.

"Permite então, Senhor, que os frutos por nós produzidos possam servir para salvar as almas dos homens de má vontade."

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Estrutura da Alma (trecho)



Em minha atividade prática tenho me ocupado de sonhos há mais de vinte anos. Vezes e mais vezes tenho visto como idéias que não foram pensadas durante o dia, sentimentos que não foram experimentados, depois emergiam nos sonhos e deste modo atingiam a consciência. Mas o sonho como tal é um conteúdo da consciência, pois do contrário não poderia ser objeto da experiência imediata. Mas visto que ele traz à tona materiais que antes eram inconscientes, somos forçados a admitir que estes conteúdos já possuíam uma existência psíquica qualquer em um estado inconsciente e somente durante o sonho é que apareceram à consciência restrita, ao chamado "remanescente da consciência". O sonho pertence aos conteúdos normais da psique e poderia ser considerado como uma resultante de processos inconscientes, a irromper na consciência.
Se, porém, com base na experiência, somos levados a admitir que todas as categorias de conteúdos da consciência podem, ocasionalmente, ser também inconscientes e atuar sobre a consciência como processos inconscientes, deparamo-nos com a pergunta, talvez inesperada, se o inconsciente tem sonhos também. Em outras palavras: há resultantes de processos ainda mais profundos e — se possível — ainda mais inconscientes que penetram nas regiões obscuras da alma! Eu deveria repelir esta pergunta paradoxal como demasiado aventurosa, se não houvesse realmente motivos que conduzem semelhante hipótese ao domínio do possível.
Devemos primeiramente ter diante dos olhos os elementos necessários para provar que o inconsciente tem sonhos também Se queremos provar que os sonhos ocorrem como conteúdos da consciência, devemos simplesmente demonstrar que há certos conteúdos que, pelo caráter e pelo sentido, são estranhos e não podem ser comparados aos outros conteúdos racionalmente explicáveis e compreensíveis. Se pretendemos mostrar que o inconsciente tem sonhos também, devemos fazer a mesma coisa com os seus conteúdos. O mais simples talvez seja apresentar um exemplo prático:
Trata-se de um oficial, de 27 anos de idade Ele sofria de violentos ataques de dores na região do coração, como se dentro houvesse um bolo, e de dores penetrantes no calcanhar esquerdo. Organicamente não se descobriu nada. Os ataques haviam começado cerca de dois meses antes e o paciente fora licenciado do serviço militar, em vista de sua incapacidade temporária para andar. Várias estações de cura de nada adiantaram. Uma investigação acurada sobre o passado de sua doença não me proporcionou nenhum ponto de referência, e o próprio paciente não tinha a mínima idéia do que poderia ser a causa de seu mal. Ele me dava a impressão de ser um tipo saudável, um tanto leviano e teatralmente meio "valentão", como se quisesse,.dizer: "Nesta ninguém me apanha". Como a anamnese nada revelasse, eu lhe fiz perguntas a respeito de seus sonhos. Imediatamente tornou-se evidente a causa de seus males. Pouco antes da neurose se manifestar, a moça que ele namorava rompeu com ele e noivara com outro. Ele me contou essa história, considerando-a sem importância — "uma mulher estúpida: se ela não me quer, eu arranjo outra — um homem como eu não se deixa abater por uma coisa destas". Esta era a maneira pela qual ele tratava sua decepção e sua verdadeira dor. Mas agora seus afetos vêm à tona. E a dor do coração desaparece e o bolo que ele sentia na garganta desaparece depois de alguns dias de lágrimas. A "dor no coração" é uma expressão poética que aqui se tornou realidade, porque o orgulho de meu paciente não lhe permitia que ele sofresse sua dor como sendo uma dor da alma. O bolo que ele sentia na garganta, o chamado globus hystericus, provém, como todos sabemos, de lágrimas engolidas.
Sua consciência simplesmente se retirou dos conteúdos que lhe eram penosos, e estes, entregues a si mesmos, só podiam alcançar a consciência indiretamente sob a forma de sintomas. Trata-se de processos inteiramente compreensíveis por via racional e, conseqüentemente, de evidência imediata, os quais — se não tivesse sido o seu orgulho —poderiam igualmente transcorrer no plano da consciência.
E agora quanto ao terceiro sintoma: as dores que ele sentia no calcanhar não desapareceram.
Elas não se enquadram na imagem que acabamos de esboçar. O coração não está ligado diretamente ao calcanhar e ninguém exprime sua dor por meio do calcanhar. Do ponto de vista racional não se vê a razão pela qual as duas outras síndromes não satisfaziam.
Mesmo teoricamente, estaríamos inteiramente satisfeitos, se a tomada de consciência do sofrimento psíquico resultasse em dor normal e, conseqüentemente, em cura. Como a consciência não podia me oferecer nenhum ponto de referência para o sintoma do calcanhar, recorri mais uma vez ao antigo método dos sonhos. O paciente teve um sonho em que se vira mordido por uma serpente e imediatamente ficara paralítico. Este sonho, evidentemente, trazia a interpretação do sintoma do calcanhar. O calcanhar lhe doía porque fora mordido por uma serpente. Tratava-se de um conteúdo estranho, com o qual a consciência racional nada sabia o que fazer. Pudemos entender, de imediato, a razão pela qual o coração lhe doía, mas o fato de o calcanhar também doer, ultrapassava qualquer expectativa racional. O paciente ficou completamente perplexo diante do caso.

jung