quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Oráculo

Oráculo
Não enterramos. Não enterramos nenhum morto. Não enterramos nenhum morto sem antes cavarmos sua garganta. Sem antes recolhermos suas cordas vocais. Sem antes as colocarmos para secar. Sem antes preenchermos a ferida exposta com a terra banhada em sangue. Para impedir que as palavras guardadas em seu peito encontrem saída. Mas tudo. Mas tudo o que não foi dito. Tudo o que não foi dito em vida. Tudo o que por um motivo ou outro se manteve trancado. Precisa ser expresso. Busca a luz do dia. Não pela garganta, não pela voz do morto. Pois o que não disse foi também o que o matou. Não pela garganta, não pela voz do morto. Pois se não o disse, também não irá querer dizê-lo agora. Mas tudo. Mas tudo o que não disse. Tudo o que não disse em vida. Precisa ser dito. Então, dependuramos suas cordas vocais. Sob o crepitar do sol. Por às vezes dois, às vezes três dias. Observamos as suas cordas vocais. Pingando sons, pingando letras. Pingando suspiros de agonia. Quanto tempo, depende do vento. Depende da chuva. Depende do sangue. Depende da força com que a terra o suga. Os filamentos vermelhos. Os filamentos tensos. Os filamentos espessos nos quais as palavras escorrem até o chão. Através dos quais fogem. Para o ventre da terra, em busca de abrigo. Em busca de proteção. Dos olhares inquisidores, dos olhares abrasivos. Os filamentos vermelhos. Nos quais as palavras se estendem. Confessam tudo o que não foi dito em vida. Em nódoas de vergonha. Em frases retorcidas. Letra por letra, sílaba por sílaba. Que se alongam, que se afinam. E se rompem. Assim uma palavra se exaure e começa a próxima. Dançando ao vento. Tremendo com o seu frio. Umedecendo-o enquanto passa. Os filamentos silenciam verdades na terra. Que lentamente as absorve. Que lentamente as absolve. Onde o sangue deitou muita dor, não nascem mais plantas. É o sangue que os insetos evitam. É o sangue do qual não surge mais vida. É a terra onde ninguém mais pisa. Uma vez purificadas as cordas vocais. Pelo sol e pela chuva. Pela terra e pelo vento. Então, as trançamos e as levamos à caverna. Para incorporá-las à teia. Em cujo núcleo descansam as cordas vocais dos nossos ancestrais. Que chegaram antes do tempo. Que chegaram antes dos costumes. E que teciam as vozes uns dos outros, tão logo morriam, para que dissem tudo o que não haviam dito. Tudo o que tinham escondido. E para que se comunicassem, pelas vibrações dos fios, com as futuras gerações. Assim secaram nossos antepassados suas vozes, assim começaram a fiar a teia. À qual suas filhas e seus filhos acrescentaram suas próprias vozes. O que continuamos a fazer, costurando nas suas margens. As cordas vocais de todos que morrem. Para que a teia não morra. Nós a alimentamos. Para que o tempo não pare. Nós a ampliamos. Para que o fim não se esqueça do começo. Para que o último não se desfaça do primeiro. Para que os costumes não se percam. Costuramos a teia. Que cresce. Para o futuro. E se expande. Para todos os lados. A teia é o nosso calendário. Onde transcorre o tempo. No seu centro encontramos carcaças de insetos que não existem mais. Há folhas secas de plantas que desapareceram. Esqueletos de animais dos quais nos falam as lendas. Mas a teia não apenas. A teia não apenas marca. A teia não apenas marca o passar do tempo. Ela também o move, ela também o engendra. Ela também o tece. Ela também o fia e desfia. Além de nosso calendário. Além de nosso contato com o passado. A teia é o que nos liga ao futuro, é também o nosso oráculo. Que nos informa o que vai e o que não vai acontecer. E nos diz o que devemos e o que não devemos fazer. Para que fale. Respiramos levemente em sua superfície. Com a boca entreaberta. A vibração corre por seus fios. Dividindo-se nas bifurcações. Reencontrando-se nas encruzilhadas. Perfazendo toda a sua extensão. Despertando ao passar pelo centro. O saber dos antigos. Que então se expressa no vocabulário das margens. De forma que possamos compreendê-lo. Entretanto, a teia apenas nos revela. A teia apenas nos revela o que já sabemos, a verdade que já pressentimos, que freme nas cordas vocais dos vivos. Ela não faz mais do que amplificar. Do que tornar audível para nós mesmos o que vem escrito em nosso hálito, o que lhe sussurramos. Quando a assopramos delicadamente. Quando a assopramos com amor. Ela canta. Mas quando imprimimos em seus fios um ar seco e áspero, carregado de ódio, medo e rancor. Ela solta um grito estridente. Por mais que tentemos disfarçar. Por mais que tentemos disfarçar nossos receios e nossas intenções. A teia sempre acaba por amplicá-los. Da teia, nada é possível esconder. À teia, nada é impossível saber. Que a teia nos mostre o caminho. Que a teia nos mostre o ser. Que a teia nos mostre o caminho. Que a teia nos mostre o ser. Que a teia nos proteja da aspereza. Que a teia nos entregue à justiça. Que a teia nos proteja da aspereza. Que a teia nos entregue à justiça. Que a teia nos revele o passado. Que a teia nos revele ao futuro. Que a teia nos revele ao passado. Que a teia nos revele o futuro. Que a teia nos revele uns aos outros. Que a teia nos revele a nós mesmos. Que a teia nos mostre o caminho do ser.

Murilo Seabra

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