quinta-feira, 9 de outubro de 2008

CONTOS D’ESCARNIO DA HILDA




PEQUENAS SUGESTÕES E RECEITAS DE ESPANTO-ANTITÉDIO PARA SENHORES E DONAS DE CASA.

I
Pegue uma cenoura. Dê uns tapinhas para que ela fique mais rosadinha (porque essa que você pegou era uma pálida cenoura). Aí diga: cenoura, tu me lembras uma certa tarde, uma certa loira, quando meu nabo, num fiasco, emurcheceu de vez. Se a tua mulher te encontrar na cozinha com a cenoura na mão, dizendo essas coisas, diga apenas: que bonita que é a cenoura, né bem?

VIII
Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.

IX
(Se você for PhD, leia até o fim. Se não, pule esta.) Faça um buquê de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o buquê para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase do discurso de Marco Antonio para o povão, era na “tua” tradução “Empresta-me tuas orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda mais porque todo mundo sabe que “Lend me your ears” quer dizer isso mesmo.

XI
Compre manteiga. Passe-a nos dedos. (Esqueça-se de Marlon Brando.) Chupe-os. E diga em tom de oração: que vida solitária, meu Deus. (Contenha-se).


Teatrinho nota 0, n.º 2
Autor: Nenê Casca Grossa

A Ursa

eu a amo, pai
mas ela é uma ursa, filho.
o senhor não sabe como são as ursas, pai.
claro que eu sei. Eu as caço todos os dias.
não seja cruel, pai.
muito bem, filho. Chame a ursa.
Ursa!
(O pai examinando a ursa) E então, meu filho? É peluda, tem focinho, tem patas, (examina os dentes) tem dentes de ursa.
o ser não notou uma coisa diferente que ela tem?
que coisa, filho?
aquilo.
aquilo... o que pode ser aquilo? Tem rabo?
a coisa da Ursa, pai.
(pensativo) A coisa... Tudo é coisa, filho. E ninguém sabe o que é coisa.
porra, pai!
A boceta da ursa.caralho!
E por que não falou logo?
a gente tenta não explicitar, né, pai.
Mas que mania que as gentes têm de não serem exatas.Coisa. Coisa. Muito bem. E o que há com a xereca da ursa?
é quente como a de gente. É doce como merengue.
Homo sum, humani nihil a me alienum puto. E isso quer dizer: homem sou e nada do que é humano me é estranho.
mas ela não é humana, imbecil.
você é que pensa.
Ursulinhaaaa, vai fazer o almoço (a ursa e traz velozmente o almoço).
Ursulinhaaaa, vai lavar a roupa (a ursa vai e traz velozmente a roupa lavada).
Ursulinhaaaa, começa a varrer (a ursa varre adoidada).
(o pai muito entusiasmado)
pede, filho, para ela me fazer aquilo. Aquilo que eu gosto.
como é que eu vou saber o que você gosta?
aquilo, aquilo.
bananas cozidas, nabos, doce de abóbora... Pepinos?
(o pai entusiasmado)
isso! Isso!
mas o senhor nunca me disse que gostava de pepinos!
ó, pelos céus!Maldito! Quero saber se a ursa sabe chupar cacetas! Sabe?
e porque não disse logo, pai? Aquilo... Aquilo... Poisela chupa cacetas muito bem.
ó, filho, casemo-nos com ela! É tão raro e singular uma ursa como essa!
vai ser bom, papai. Obrigado, papai.
vai ser bom, meu filho. Obrigado, meu filho.
(As atitudes da ursa durante a peça ficam a cargo do diretor)

CONTOS D’ESCARNIO / TEXTOS GROTESCOS (1990).

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