quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Gravando, Gravando


Você me trata mal, ela dizia, você me diz coisas horríveis, coisas que um homem decente jamais diria a uma mulher. Acusação que ele rejeitava, indignado e irônico: você não sabe o que está dizendo, você vive num mundo de fantasia, ouvindo vozes.
Discussão que se prolongou por anos, até que ela teve uma idéia: provaria ao marido concretamente o que estava afirmando. Para isto, comprou um pequeno gravador, e passou a usá-lo constantemente, escondido sob a blusa. Ele de nada desconfiava. Continuava com seus impropérios. Quando a fita chegou ao fim – duas horas de agressões e desaforos – ela decidiu confrontar o marido com a realidade. À noite, depois do jantar, chamou-o ao quarto:
- Tenho uma coisa para lhe mostrar.
- O que é isto? – Ele, desconfiado, olhando a fita e o gravador.
- Ouça.
Ele ouviu. Por duas longas horas, ouviu. Quando a gravação terminou estava arrasado:
- Você tem razão – disse, a voz embargada, os olhos cheios de lágrimas. – Eu não presto mesmo. Sou tão ruim, tão perverso, que nem de minha maldade me dava conta.
Levantou-se:
- Vou-me embora. Não mereço viver ao seu lado.
Foi mesmo. Sumiu tão completamente, que ela nem sabe de seu paradeiro. Vive só; e a verdade verdadeira é que sente falta dele. Para se consolar, todos os dias ouve a gravação.
O gravador:
- Você é idiota, mulher, você tem cérebro de minhoca, você não faz nada direito.
Ela:
- Amor, onde estás, amor?
O gravador:
- Na cama você é um desastre, trepar com uma pedra de gelo é melhor do que trepar com você.
Ela:
- Volta pra mim, não posso viver sem você.
O gravador:
- Arrependo-me de ter saído à rua no maldito dia em que te encontrei. Se pudesse voltar atrás...
Ela:
- Fala mais, amor! Me xinga, me puteia, mas fala mais!
Inútil: o gravador está mudo. Qualquer gravador cala quando a fita termina.

um conto triste e belo do Moacyr Scliar, o escritor que eu queria ser...

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